No rádio do posto de gasolina tocou uma canção que falava de Prometeu. Do estoicismo de Prometeu. Tanto quanto sei das últimas aulas de história e geografia, Prometeu foi quase o deus que mais acreditou na humanidade. Quase. Há outro. Mais P, aquele malandro, roubou o fogo do chefão para levá-lo aos mortais. Por causa disso foi amarrado a uma rocha para toda a eternidade. Há lá, agora não é hora para falar de castigos, muito menos de castigos que envolvam abraços aos rochedos. Íamos ficar horas discutindo arbitragem e as diferentes tonalidades de um cartão vermelho. Quem acredita num castigo, também acredita na chegada das setenta alegrias. Alguns acham isso, outros não. Hoje não é dia para isso. Estoicismo. Hoje é a tarde em que 92 corpos foram achados no deserto. Silêncio. Entre o Níger e a Algéria vão tantos quilômetros de distância, deus. Hoje era o aniversário de Drummond. Tinha aquele poema sobre a chuva e sobre o nome que toda mulher leva cozido no veludo; principalmente eu. Tinha aquele poema sobre o bonde que não veio, aquele poema sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas e mais do que tudo, aquele, o amor, Carlos, você é telúrico. A noite passando em você e os recalques se sublimando. Lá dentro, um barulho inefável, rezas, vitrolas, santos que se persignam. Anúncios do melhor sabão, um barulho que ninguém sabe de que, o quê. Você é a palmeira. Você é o grito que ninguém ouviu no teatro. Hoje é o dia que o terremoto atingiu Taiwan. Seis ponto seis, sabe-se lá em que escala. Sabe-se lá quantos fogos, quantas ondas de quarenta metros, quantos alicerces dobrados como se dobram as pernas dos grilos no outono noruêgues. Em português não lhe chamamos Taiwan, sempre lhe chamamos Ilha Formosa. Faz parte dos quatro tigres asiáticos e, por falar nisso, acho que é sempre tempo de falar nisso, uma vez conheci um santo que não parava de repetir o mantra: “I never saw so many tigers“. Claro que isso não aconteceu no elevador de um hotel na Flórida, mas por causa dos movimentos das placas tectônicas, o mundo cada dia se aproxima mais do mundo, só falta o verão aproximar-se mais do verão. Diabos. Faz um frio danado outra vez. O Lou Reed morreu essa semana. Naquele último retrato em branco e negro, ele tinha o punho todo cerrado, cabelo todo desalinhado, as orelhas como sempre do tamanho de um planeta. Acho que há um time qualquer se formando para além de nós. Um time de reis e profetas de orelhas grandes jogando as bolas por cima de nossas cabeças. Laurie Anderson, a mulher de Lou, escreveu uma nota para a secção de obituários de um pequeno jornal a serviço da comunidade de East Hampton. Que outono mais bonito, foi assim que ela começou. Que outono mais bonito e tudo brilha e aquela incrível luz suave. Desculpe o meu inglês, mas “Lou was a Tai-Chi master and spent his last days here, being happy and dazzled by the beauty and power and softness of nature.” Um príncipe, foi o que ela lhe chamou, um príncipe e um boxeur. Prometeu regenerava-se durante a noite, rosto encostado na umidade do rochedo, estômago aberto pelos pássaros. É assim que um deus faz um homem, é assim que deus faz valente. Os Red Socks ganharam o campeonato. 6 a 1. Mas ainda me falta saber tanta coisa sobre o baseball. Sei de um dono de bar que está disposto a explicar tudo. Até lá guardo a imagem daquele bastão sendo lançado até a arquibancada e caindo aos pés de um homem que chorou. Sempre achei que os Red Socks eram uma espécie de Botafogo norte-americano, portanto vai alegria. A Índia está no caminho para Marte. No próximo dia 5 é lançada a nave espacial que vai abrir as hostes àquela que é a primeira missão interplanetária indiana. Eles esperam que o bicho entre arrastando fogo até o planeta vermelho lá para setembro do ano que vem. Eu espero que o bicho leve no bolso o recadinho do Ray Bradbury dobrado em quatro partes, aquela onde ele explica assim: “É bom renovar o espanto da gente, disse o filósofo. As viagens no espaço fizeram-nos a todos de novo crianças.” Em Maputo, como se isto no mundo fosse um castelo de cartas que afinal só quer cair na paz, aconteceu aquela que já chamam a maior manifestação não-governamental do que há memória. Na ilha formosa a temperatura agora é de exatamente 24 graus. O Carlos se fosse vivo fazia 111 anos. Obrigada homem, obrigada. “O amor é isto que você está vendo”.». Matilde Campilho
@pftggits3 жыл бұрын
1:27
@everlainesantos86854 жыл бұрын
gente, alguém sabe onde podemos resgatar os outros vídeopoemas da Matilde?
@fidalgalabavi3 жыл бұрын
Procuro e não acho. 😔
@ronaldo0grande3 жыл бұрын
eu tinha gravado mas apaguei :(
@vanusaaraujo94393 жыл бұрын
Já encontrou Fevereiro ? Tem aqui no KZbin
@ronaldo0grande3 жыл бұрын
@@vanusaaraujo9439 mas nao eh o video original mais :(
@manuelsantos21992 жыл бұрын
RETRATOS | MATILDE CAMPILHO kzbin.info/www/bejne/mGSxommLo9Vpbac Fevereiro - Matilde Campilho (expressão corporal) kzbin.info/www/bejne/hqmql2qfadKZiMU Sangue Latino - Matilde Campilho kzbin.info/www/bejne/o5bbo2iLnL6KbJI Fevereiro - Matilde Campilho LEGENDADO kzbin.info/www/bejne/l2PYYndqnpJ2apo Alexandre O'Neill por Matilde já foi excluído do YT