«Tem de ir ao coração do Alentejo, a Serpa e seu termo, quem quiser conhecer uma das mais genuínas e curiosas manifestações do nosso povo: as canções corais que os íncolas da região, na sua maioria rudes trabalhadores do campo e pequenos mesteirais, cantam com uma admirável musicalidade nata e a compenetração de quem cumpre um velho ritual. É vê-los, concentrados e um tanto bisonhos, formar os seus grupos, cerrados uns aos outros, muitas vezes as raparigas os braços nos braços, e, numa cadenciação suave do corpo, com messe de altas espigas tocadas pela brisa, darem início à função. Uma voz entoa a melodia: canta sozinha os primeiros compassos; em geral, outra lhe dá uma como que réplica - e logo as restantes se lhes juntam, numa harmonização instintiva, em que outro gostoso arcaísmo lembra a arte medieva do Organum e do Discantus. Esta gente canta com verdadeira paixão e todas as ocasiões lhe são boas para dar largas ao seu lirismo ingénito. Não há trabalho, folga, festa ou reunião de qualquer espécie sem um rosário infindo de cantigas. A alma do alentejano é profundamente musical e o canto é o elo vital que liga aqueles seres primitivos no sentimento de uma fraternidade de destinos, na afirmação de uma comunidade telúrica. Em qualquer parte o alentejano se reconhece e identifica, reconhecendo e identificando do mesmo passo os seus irmãos em sangue e espírito, mediante o viático das suas canções. O ar e a paisagem vibram constantemente de melodias. É, porém, no silêncio da noite, da vasta e profunda noite alentejana, que estas ganham toda a sua altura e projecção anímica; e Serpa, na sua quietação, no seu cenário a um tempo humilde e fascinante de velho burgo parado e esquecido, constitui a moldura perfeitamente adequada, a atmosfera própria onde as vozes dos seus noctâmbulos cantadores adquirem o relevo e a ressonância necessários e ideais.» Fernando Lopes-Graça excerto do "Apontamento sobre a canção alentejana", de Janeiro de 1946, publicado na Vértice n.º 46, em Maio de 1947, e na 1.ª edição de "A Canção Popular Portuguesa", de 1953